Criado junto com a internet e com a ajuda dos nossos amigos da baía dos piratas logo me tornei um cinéfilo de carteirinha - devorando filmes e mais filmes e lotando discos rígidos. Estava me apaixonando pela sétima arte e conhecendo o poder do audiovisual; fiz os vídeos da formatura, editei videoclipes para amigos, fiz um curta para o festival de cinema da cidade e quase entrei num curso de cinema depois que terminei o colégio.
O fato é que a gente cresce é o nosso gosto por entretenimento muda também. Queremos mais, queremos pensar junto, queremos ir mais longe. A sétima arte que eu achava que conhecia eram apenas os mesmos filmes hollywoodianos com roteiros da jornada do herói de sempre. Veio a fase de assistir só documentários, do cinema francês, do cinema argentino e latino-americano. Por último, comecei a apreciar os filmes punks de baixo orçamento e de experimentar todas as produções pra lá de independentes que encontrasse na internet. Logo minam as certezas e o que gostamos é jogado em um liquidificador para lá e para cá.
Mas, claro, o problema não mora nos diferentes sabores da arte; a variedade é inerente a sua beleza, mesmo que existam tipos dela mais difíceis de entender que o próprio conceito de cultura.
O problema, a meu ver, é sobre quem a fabrica, e, claro, sobre quem a entrega.
Em toda a América Latina a invasão cultural do grande irmão estadunidense se faz presente desde o começo do entretenimento audiovisual. E aqui no Brasil, muito além do Cidadão Kane, já crescemos treinados feito os épsilons de Huxley por um “Plim, Plim” constante em nossas cabeças.
Ideias diretas como fumar é charmoso, vencer na vida é ter dinheiro, emagreça mais para ser aceita e outras mais sutis, que afetam, de um jeito condicionado, nossa visão de mundo e das outras pessoas, foram plantadas num cofre no limbo de nossas mentes.
Depois da contracultura, do tropicalismo e de outras coisas, veio aquela que trouxe a virada de mesa definitiva: a internet. Para os ingênuos como eu, depois de matarmos a tevê, a grande rede era o passaporte para uma utopia descentralizada de acesso à informação, diversão, imersão em outras culturas, aprendizado de todas as teorias e conhecimento de todas as práticas.
“Com a tecnologia temos uma enorme facilidade no acesso à informação e ao conhecimento. Uma pena é o grande tempo desperdiçado pelos jovens no computador. Muitos ficam horas ali e não aproveitam de maneira produtiva esse tempo.”
Essas palavras eu diria aos 16 anos, numa entrevista para o jornal da cidade. Um proto-entusiasta-culturalivrista, mas um cagador de regra também.
Entre “Lan Houses”, idas na casa dos amigos e bem mais tarde com internet em casa, fui acompanhando o aparecimento do Napster (na minha vila a gente usava o Ares), a blogosfera, os downloads em RMVB, as comunidades do Orkut, o The Pirate Bay, as compras no Submarino… A rede era uma grande união de pontos interligados, cooperando e criando informação. Avançando o avanço. Par-a-par.
Mas as coisas logo mudaram. Por um lado, passei a entender a quais custos os avanços tecnológicos eram criados, por outro, era realmente latente que a web em si entrava de cabeça numa lógica capitalista e comercial. Dos acessos cada vez mais cerceados até as grandes corporações, o que se queria era mais Wikipédia e o que tivemos foi mais Amazon.com.
O ponto chave da era do streaming é que, antes, a infraestrutura dos servidores basicamente não suportava todo esse tráfego. Era muito caro distribuir arquivos em boa qualidade e com as longas durações das obras cinematográficas de uma maneira satisfatória para o usuário. Por isso as redes distribuídas funcionavam, cada nó na rede recebia e também distribuía os arquivos, de byte em byte o usuário enche o disco rígido.
Depois do primeiro boom ponto com, do iTunes copiar o Napster, do Facebook coletar seus dados e dos fundadores do TPB serem presos, a infraestrutura tecnológica possibilitou que viesse aquela que desempataria o jogo entre uma internet dos comuns e a internet corporativa. A Netflix, simplesmente, surrupiou toda a rede e sugou para si a distribuição da cultura audiovisual no ciberespaço de uma forma jamais vista.
Em um aspecto comportamental, os serviços de streaming trouxeram uma facilidade perigosa para o consumo da cultura digital; ficamos preguiçosos na busca de outro conteúdo. Quantas vezes já não ouvi: “Se não tem na Netflix eu nem assisto”. Até parece que assistir filme é sinônimo de assistir Netflix. Tomara que não vire verbo feito “Google it!”. Eu, hein. Com uma tímida pluralidade, num mundo de tantos olhares, ficamos presos de novo como na época da tevê.
Paralelamente com isso, outros monstros também se criaram. O poder dos dados e dos algoritmos, sempre analisando de forma meticulosa nossa navegação, colhendo informações e ajudando nas decisões comerciais das empresas - no caso da Netflix, levando ao cancelamento de produtos que não dão lucro e boatos de séries escritas por inteligência artificial. Isso é muito Black Mirror.
Ainda têm os programas de código fechado, a centralização de conteúdo, o copyright, o DRM, as teles globais todas de olho em planos limitados de internet…
Se a revolução vem de baixo em prol de melhorias para todos, o que as gigantes de tecnologia na era do streaming fizeram foi um golpe. Um baita golpe comercial, um golpe um pouco técnico e, infelizmente, um golpe minimamente artístico.
Contra toda essa frustração de um futuro digital que quase foi, somado ao encanto pelo audiovisual e aliado a umas férias ociosa na universidade em 2016 foi que me ocorreu a ideia de trabalhar no Libreflix.
Eu desejava que existissem meios de acessos à cultura audiovisual, tão práticos e amigáveis como os já existentes, só que se fundissem com as ideiais que eu acredito, sejam elas políticas: do uso de software livre, do sem fins lucrativos, e do fomento à cultura livre; ou técnicas: do desenvolvimento colaborativo e do uso de código-aberto.
A ideia inicial era construir algo para rodar num velho notebook que eu queria transformar em mediacenter, então fiz os primeiros esboços e um levantamento de obras que estavam livres para exibição na internet. Mas foi só no semestre seguinte, na universidade, que o projeto foi expandido e ficou online, quando conciliei o seu desenvolvimento com um trabalho para uma disciplina de banco de dados que estava cursando.
A plataforma ainda estava em teste e um pouco capenga quando divulguei para os amigos e colegas próximos. Logo um site sobre GNU/Linux publicou no mês passado pela primeira vez sobre a plataforma e os acessos foram chegando.
Entramos no ar oficialmente, no endereço libreflix.org, em Agosto. De lá para cá, o projeto tem sido apreciado e apoiado por muitas pessoas. Tenho tentado levar as matérias da faculdade, trabalhar um pouquinho e planejar as novas funcionalidades ao projeto. Da minha maneira, quero remar para aquilo que acredito, para uma cultura, uma internet e uma sociedade mais livre.
Não sei como será essa jornada, mas sei que juntos podemos fazer muito mais: descentralizar os meios de acesso; fortalecer produtoras, diretores e artistas; incentivar que criadores liberem seu trabalho de forma gratuita; propiciar meios para que os usuários, quando puderem, contribuam financeiramente com o que consomem; essas são algumas ações que podem nos levar para uma arte mais livre. Há um longo caminho, e a web é nossa aliada - cabe a nós a tomarmos de volta.
Quem sabe ainda consigamos transformar o “ponto com” de Comércio, em um “ponto com” de Comunidade.
– Guilmour